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Heroína de Kirschner

Um guia imperfeito de como salvar sua casa de uma invasão canina


Nem almocei naquele dia. Fiquei a manhã toda reclamando que queria tomar suco natural, como quem deseja uma cerveja gelada no churrasco de domingo. Era terça-feira, pouco mais de 11 horas da manhã e estava atrasada para o estágio…


Desci as escadas do sobrado de janelas e portas cor-de-rosa em que morava. Surpresa ao chegar na garagem: Albina, a filhote de pitbull do vizinho, estava se aventurando pela minha casa, procurando Miau — meu gato. Tratei logo de chamá-la para a casa dela, fazendo sinais com as mãos como quem joga milho para galinhas.


O sobrado do vizinho tinha a mesma estrutura que o meu, inclusive as mesmas cores na pintura; era bem ao lado. O portão, que mais parecia uma enorme grade de prisão, não estava trancado. Abria e fechava horizontalmente, bastando puxar para a direita ou esquerda enquanto a estrutura pesada deslizava pelo trilho.


E assim fiz, puxando para abrir enquanto chamava Albina para entrar. Acho que ninguém havia ensinado que não se deve entrar na casa de estranhos.


Relutante, entrou, porém dando meia volta para sair novamente.


“Não, Albina, fique! Por favor.”.


Mesmo pedindo, não adiantava. Foi necessário agachar-me e pôr em prática um plano não tão perfeito assim.


Já ao lado de fora, enfiei o braço esquerdo pela grade para fazer carinho na filhote, convencendo-a de que seria bom ficar presa em casa durante a tarde. Enquanto isso, fechava o portão com o braço direito.


Fui puxando a estrutura de ferro até que encontrasse a trava que ligava muro e portão, fechando-o. Estava dando certo, até que percebi uma leve inclinação do portão em minha direção.


Pois bem, não havia trava. O portão não fechou. Ele saiu dos trilhos e estava caindo sobre mim.


Fechei os olhos.


Quando os abri, simplesmente estava debaixo de quilos e quilos de ferro, apavorada. O portão caiu e eu era a base de sustentação.


Sob o forte efeito da adrenalina, gritei o mais alto que pude.


Em menos de 5 minutos, meu ex namorado desceu assustado, sem saber ao certo do que se tratava. Não o culpo por ficar um tempo me olhando, tentando digerir a situação. Imagine que loucura sair de casa e dar de cara com uma menina sob um portão caído…


Superado o choque inicial, ele levantou o portão o máximo que conseguiu, abrindo espaço para que eu pudesse sair — como quem dança Limbo no modo mais difícil possível.

Já livre da situação, segurei meu punho esquerdo o mais forte que pude e sentei na primeira cadeira que encontrei. Estava perplexa em descobrir que naquele 13 de dezembro, 48 anos da instituição do AI-5 no Brasil, consegui quebrar minha clavícula direita e meu punho esquerdo em dois lugares.


Não conseguia chorar, estava movida pelo ódio.


O SAMU chegou rapidamente. Fui imobilizada e colocada sobre uma maca, ganhando carona do resgate até o hospital. Avaliaram-me, fazendo os encaminhamentos para a cirurgia mais tarde.


Não consegui tomar meu suco natural, mas contentei-me em salvar uma propriedade privada de uma invasão canina e ainda condecorada com dois Fios de Kirschner no punho.


*Narrativa originalmente produzida para a disciplina de Redação Jornalística I. Março de 2019.

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